domingo, 17 de abril de 2016

Depoimento de Juca de Oliveira dado ao jornal O Democrata

“São-roquices
São Roque por Juca de Oliveira
Tenho consciência de que sou um caipira de São Roque. Pelo sotaque, a paixão pelo verde, pelos animais e as marcas de infância que permanecem intactas, embora distantes. As vinhas, o vinho, os alcachofrais, os casarões barrocos da antiga praça da matriz. Bom, pra não desfilar tudo que me apaixona na minha amada São Roque, vou me fixar apenas numa fazenda onde passava férias quando criança: a fazenda do Carmo do meu tio Juca e o Quilombo do Carmo, onde famílias remanescentes da escravidão construíram suas cabanas em torno de uma igreja. Eu sempre ia pra lá com um grande amigo, o Zé do Nino, ainda hoje o cidadão mais popular e querido de São Roque. Íamos de ônibus até Vargem Grande e, depois, na carroça com que o Tino vinha nos buscar. Não largávamos o Tino, o Francisco e o Juquinha, que cuidavam das roças e do gado, os três nascidos na fazenda. E lá íamos na carroça morrendo de felicidade, cruzando sítios e fazendas, imensos descampados, brejos onde cantavam os avinhados que já não cantam mais. E finalmente a casa grande. Imponente lá no alto, paredes de taipa, largas de mais de metro, janelões e assoalho de madeira de lei, telhas imensas. Tio Juca, do alpendre, acompanhava nossa chegada com um velho binóculo e nos recebia rindo, feliz com tia Virgínia ao lado. Abraços, beijos, o quarto arrumado, as camas preparadas, o perfume das romãzeiras, as galinhas d’angola cantando alucinadas, marrecos, os cães veadeiros, rolinhas e andorinhas nos beirais, a mesa posta para o almoço. A comida em panelões de ferro sobre o fogão de lenha que jamais se apagava e onde nos servíamos. Manequinho, um dos compadres, vinha trazer milho para os burros, fazer compras e almoçava com a gente, alternando histórias deliciosas de pesca e caça e também do “coisa ruim” infernizando cavalos nas picadas. Depois do almoço Manequinho selava a mula e se despedia.
– Intão inté cumpadi…
Mas o convite do tio Juca ia adiar a cavalgada:
– Antes vamos jogar uma partidinha de escopa, compadre, não custa, depois você vai…
Manequinho, negro simpático e amoroso, não resistia.
– Intão só uma, cumpadi…
E lá ficavam jogando escopa entretidos e felizes. Zé do Nino e eu, já integrados no cotidiano, íamos com o Tino soltar as vacas no pasto a cavalo, ou fazer fubá no moinho da fazenda. Descíamos até o lago, eu abria a comporta, a água escorria pela bica e enchia as aletas da roda d’água assustando as saracuras. Tino derramava milho nas mós e o Zé ensacava o fubá macio e perfumado. Fubá ensacado, era mergulhar no lago e nadar aos gritos de alegria até começar a escurecer. Como era difícil sair daquela água cristalina com sei lá quantos milhões de lambaris, traíras e carás nadando lado a lado! E voltávamos para a casa grande com a sensação de dever cumprido. A partida de escopa no fim. Manequinho se despedia com seu delicioso:
– Intão inté, cumpadi…
Mas tio Juca não desistia:
– Mas compadre, já é quase noite. Sorte a mula, a gente janta, joga mais umas queda e amanhã cedinho ocê vai…
Manequinho não resistia, desencilhava a mula, soltava no pasto e voltava pra escopa. No dia seguinte, acabado o café, tio Juca atacava de novo, o tom súplice:
– Compadre Maneco, veja só. Agora já é quase a hora do almoço, você fica pra almoçar, a gente joga umas escopas e depois de almoçado você vai…
E nesse passo tio Juca segurava Manequinho semana inteira, encilhando e desencilhando a mula. Entravam férias, saiam férias e Manequinho sempre lá, encilhando e desencilhando a mula… Íamos com frequência ao Carmo, ouvir a banda do quilombo, rezar na igreja, acompanhar a procissão e prosear com aquela gente querida e bem humorada, um nunca acabar de histórias maravilhosas de caçadas, pescarias, umas tristes do tempo da escravidão. Não me lembro de uma rusga, um lamento. Apenas temas simples sobre integridade, honra, solidariedade. Só recentemente comecei a desconfiar de que aquilo teria sido parte considerável da minha formação. O contato desde criança com esses trabalhadores nascidos na fazenda, queridíssimos e inesquecíveis amigos descendentes de escravos, e a convivência com tio Juca e os negros do quilombo, me levaram a convicção de que todos os seres humanos (e não humanos) são absolutamente iguais, e de idêntico valor. Para exemplificar, apanho abelhas, vespas e marimbondos presos nas vidraças e os liberto sobre alguma folhagem para que voltem aos seus enxames. E a certeza de que depois de salvos nos tornaremos amigos para sempre. Hoje quando penso no Zé do Nino, ou José Carlos Dias Bastos, portentoso conterrâneo amado por todos, sua religiosa dedicação à cidade, aos cidadãos que o tem como amigo, irmão, pai, protetor, organizando festas, desfiles, cuidando com paixão das tradições de São Roque e sua história, tenho certeza de que essa entrega, esse desprendimento, a espontânea generosidade desse modelo de homem foram forjados na nossa convivência com aqueles inesquecíveis amigos remanescentes da escravidão no Quilombo do Carmo. Felizmente eu também fui contaminado.
A coluna São-roquices tem a honra de reproduzir, com o consentimento exclusivo de Juca de Oliveira e do Sesc São Paulo, a recente e significativa crônica “São Roque por Juca de Oliveira”, que o ator e dramaturgo são-roquense escreveu para a seção “Memórias Paulistas”, do portal do Circuito Sesc de Artes.
Juca de Oliveira assegurou: “É uma imensa alegria a publicação dessas memórias nas páginas de O Democrata e, especialmente, na coluna São-roquices. Que os leitores recebam esse texto como uma demonstração do meu afeto pela cidade e pelos são-roquenses”.”
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Simone Judica é advogada, jornalista e colunista de O Democrata (simonejudica@gmail.com).
Foto: Portal Circuito Sesc de Artes