domingo, 22 de maio de 2011

Pequena história para Dona Ólida.

Casa da Dona Ólida atrás do andor de Sao Roque
Foto: Denise Boschetti

Era década de 1960, em São Roque, cidade a 70 km de São Paulo, Brasil e nessa época podíamos brincar na rua à vontade, pois praticamente não passava carro e outro perigo, pouco havia a não ser nos machucarmos em alguma brincadeira ou brigarmos.
A rua estreita de paralelepípedos, com muitas outras casas antigas, rua que todo ano, em agosto, é enfeitada com tapetes de serragem por onde passa a procissão de São Roque. Outros personagens dessa época têm espaço em minha memória, mas vou escrever aqui a que tenho da Dona Ólida.
Até hoje não consegui achar o significado do seu nome, talvez seja uma variação de Olinda ou Olivia, mas é apenas uma probabilidade, portanto Ólida é um nome sui generis em minha memória, se é possível dizer isso.
Dona Ólida morava numa casa antiga, em frente à casa dos meus nonos na Rua Rui Barbosa, uma rua central da cidade.
Quase todo fim de tarde e finais de semana eu, meu irmão, primos, primas e amigos entre 5 e 12 anos, saíamos pra brincar. A rua estreita, de paralelepípedos e ao mesmo tempo cheia de possibilidades, não só para as brincadeiras de bola de meia, pega-pega, carrinho de rolimã, esconde- esconde, entre tombos, trombadas, possíveis janelas quebradas, joelhos e nariz ralados, mas por ser entrecortada por uma ruela que fica na esquina do belo cine São José, novo e moderno para a cidade, nos anos 60. Essa pequena rua tinha uma galeria, que dava acesso ao Guarani, uma padaria grande, que ainda existe, na praça matriz. Esse ponto da cidade, sempre foi interessante.
Brincávamos muito, quase todos os dias, até ficarmos exaustos e era só começarmos a nos reunir na rua, que Dona Ólida se punha debruçada na janela da sua casa vigiar nossas brincadeiras. Ela tinha um olho afiado, pois ficava nos observando desde o começo e sempre tentava achar um culpado ou nos culpar pelos fatos.
Eu por exemplo de tanto correr, perdia minhas correntinhas e pulseirinhas, e voltava chorando, lá estava Dona Ólida:
-Viu se não tivesse corrido tanto!
Um dos primos não podia correr muito, pois saía sangue do nariz, e ele começava a chorar e todos nós ficávamos com muito medo, o sangue não parava de sair, o medo do que podia acontecer e dos mais velhos.
Dona Ólida gritava da janela e então começavam a sair os pais, irmãos mais velhos, querendo saber o que estava acontecendo. Como ela sempre precisava responsabilizar alguém e se adiantava: - Foi fulano que deu um soco no nariz dele.
Nós vivendo naquela agonia, morrendo de medo. Logicamente a brincadeira murchava, os pais ficavam bravos, o primo entrava.
Outras vezes ficávamos brincando na calçada, as meninas com as bonecas e os garotos jogando bola. Dona Ólida sempre ficava na janela durante nossas brincadeiras, se não estava logo chegava. Ela usava um coque, o cabelo grisalho, devia ter por volta de uns 60 anos, ou mais, que pra época era uma anciã, ainda mais pra nós que tínhamos entre 5 e 12 anos.
Nós a conhecíamos somente pela janela era raro vê-la na porta da casa de corpo inteiro.
Ela também ficava vigiando os casais de namorados, implicava com o jogo de bola, pois achava que ia quebrar sua janela e isso passou a ser divertido, até os adultos já diziam pra ela nos deixar a vontade.
Nessa época era comum, as pessoas ficarem nas janelas de suas casas observando a rua, conversando entre si, pois a rua é estreita e era silenciosa. Todas as casas tinham um espaço comercial ao lado ou em baixo, eram os armazéns, as quitandas, os açougues e outros comércios.
A sua casa sempre foi um mistério, eu ficava imaginando como seria lá dentro, mas nunca entrei. Ao lado teve uma quitanda, depois leiteria, hoje funciona um restaurante. Dona Ólida morava sozinha e a casa era inacessível, depois de muito tempo veio um sobrinho morar na parte de cima.
Fomos crescendo, mas continuamos a brincar nessa mesma rua, em outras ruas, de outros jogos até, que certo dia, ficamos sabendo que Dona Ólida morreu.
Não ia mais haver, quem ficasse reclamando da gente pela janela, mas ficamos tristes e sentimos saudade, afinal ela era uma personagem do cenário em que se passavam nossas brincadeiras de infância em São Roque. Ela interagia conosco e provavelmente se divertia muito também.
A casa, apesar de antiga se mantém viva, já foi clínica veterinária e venda dos produtos para o mesmo fim, atualmente parece que só funciona um restaurante e espero que possa ser preservada.
Essa é uma pequena história da memória que tenho da Dona Ólida Maraccini e abaixo uma foto da sua casa.
                                                   
                                                                  Denise Boschetti

           
                                  Foto: grupo do facebook SOS patrimônio histórico de São Roque- por Silvia Mello.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

MEMÓRIAS E HISTÓRIA

Caros leitores, esse Blog pretende reunir memórias e histórias de vida, de pessoas que nasceram, viveram ou vivem em São Roque, em Montpellier ou que faça link com o tema e esses locais.
A ideia principal é compor uma história dessas duas cidades com a história de cada um. Ao conhecer a história da cidade de Montpellier na França e encontrar inúmeras semelhanças com a pequena São Roque no interior de São Paulo-Brasil me inspirei a criar esse Blog pra compartilharmos nossas histórias, nas quais certamente encontraremos muito em comum.

O Memorial

Memorial é o resultado de uma narrativa da própria experiência retomada a partir dos fatos significativos que nos vêm à lembrança. Fazer um Memorial consiste, em um exercício sistemático de escrever a própria história, rever a própria trajetória de vida e aprofundar a reflexão sobre ela. Esse é um exercício de autoconhecimento. 
O Memorial está intimamente relacionado a um exercício de reminiscência, isto é, de “puxar pela memória”.
Como a memória é seletiva, filtrada pelo que sentimos, espero que no processo de construção desse Memorial, esta seleção torne-se reflexiva.

Por que preservar memórias?

Ao recuperar memórias temos maior conhecimento de lugares, pessoas, fatos e isso gera pertencimento.
Ao sentir que pertencemos à historia, passamos a valorizar mais os lugares,as pessoas e os fatos,a perceber que a historia é viva, feita cotidianamente e pode ser recostruida ou reformulada, deixando assim de ter uma postura passiva e distante dos acontecimentos historicos e dos problemas do local onde vivemos.

Mas afinal o que é memória?

A memória é a capacidade de registrar, armazenar e manipular informações provenientes de interações entre o cérebro e o corpo ou todo o organismo e o mundo externo. É a base dos nossos sentimentos ou de qualquer atitude cotidiana, variando conforme os diferentes períodos da vida (gestação, infância, adolescência, senescência). Está intimamente relacionada com o aprendizado, uma vez que o aprendizado é a aquisição de conhecimentos e a memória é o resgate desses conhecimentos após certo tempo.
Endel Tulving, um dos líderes da pesquisa sobre memória, definiu-a (memória) como “uma viagem mental no tempo”, ou seja, lembrar o que aconteceu no passado é o mesmo que reviver o passado no presente.
Para Com Brooks, pesquisador da neurodinâmica, “ao invés de ter representações a memória é uma adaptação dinâmica de cérebro por reconstituir um ato na reposta acontecimentos no contexto diferente no ambiente”. Não há uma estrutura única e isolada do cérebro que determine a memória, pois ela é o resultado de um agrupamento de sistemas cerebrais trabalhando em conjunto.
A forma como encaramos certas situações e objetos está impregnada por nossas experiências passadas. Segundo Ecléa Bosi (1979), através da memória, não só o passado emerge, misturando-se com as percepções sobre o presente, como também desloca esse conjunto de impressões construídas pela interação do presente com o passado que passam a ocupar todo o espaço da consciência. O que a autora quer enfatizar é que não existe presente sem passado, ou seja, nossas visões e comportamentos estão marcados pela memória, por eventos e situações vividas. De acordo ainda com essa autora, o passado atua no presente de diversas formas. Uma delas, chamada de memória-hábito, está relacionada com o fato de construirmos e guardarmos esquemas de comportamento dos quais nos valemos muitas vezes na nossa ação cotidiana. 

História oral segundo Paul Thompson

Paul Thompson é um historiador inglês, pioneiro na história oral na Grã-Bretanha. Trabalha de uma perspectiva socialista, o que influencia a sua concepção de história, de tratamento com as fontes e da utilidade social do trabalho do historiador. Para ele, a história oral é uma aliada importante, junto com as fontes tradicionais, para a democratização da história, e também uma visão ao mesmo tempo ampla e detalhada sobre aspectos que não seria conhecido pelos documentos escritos. “A história oral devolve a história às pessoas em suas próprias palavras. E ao dar-lhes um passado, ajuda-as também a caminhar para um futuro construído por elas mesmas” -
Também são importantes para a aproximação da história com as comunidades, as crianças, os trabalhadores, e, não menos importantes, os idosos. Faz uma defesa apaixonada da utilização de fontes orais, citando-se muitos exemplos de projetos de pesquisa e de história em escolas, asilos e comunidades. A interpretação da história oral, na concepção de Paul Thompson: “Única, muitas vezes candidamente simples, epigramática e, contudo, ao mesmo tempo representativa, a voz consegue, como nenhum outro meio, trazer o passado até o presente. E sua utilização não altera só a textura da história, como seu conteúdo” -
Segundo o autor, a história oral foi uma das primeiras formas de se fazer história. O surgimento da escrita e a crescente sofisticação das narrativas históricas fez com que fossem priorizadas as fontes documentais em detrimento das orais, e que essas narrativas se distanciassem cada vez mais dos sujeitos históricos. Portanto, para Thompson, há várias utilizações da história oral, mas a que mais importa para ele é aquela em que a finalidade seja construir uma história democrática e coerente com os seus sujeitos, e não apenas com documentos e estatísticas; e nesse processo ajudando-os a entenderem melhor sua situação e também realizarem um tipo de terapia de reminiscência. Há uma mudança de enfoque da história tradicional, ou seja, os menos favorecidos socialmente podem ter sua voz ouvida.
A mais importante contribuição da história oral, na opinião do autor, é com a história operária. Foi na preocupação social de pesquisadores que os trabalhadores industriais começaram a ter voz na história. É um campo rico em publicações do gênero, e que foi em parte responsável pelo “resgate” da história oral nos século XIX e XX.
Estudos sobre costumes, comunidades, formas de vida são recheados de depoimentos de pessoas simples e também de membros da elite. “As gravações demonstram como é rica a capacidade de expressão de pessoas de todas as condições sociais” -
Segundo Thompson, o que se obtém das entrevistas é a percepção social dos fatos, os seus significados sociais. A fidedignidade do relato varia conforme uma série de fatores.
“A natureza da memória coloca muitas armadilhas para os incautos, o que frequentemente explica o ceticismo daqueles menos informados a respeito das fontes orais. Porém, oferecem também recompensas inesperadas para um pesquisador que esteja preparado para apreciar a complexidade com que a realidade e o mito, o “objetivo” e o “subjetivo”, se mesclam inextricavelmente em todas as percepções que o ser humano tem do mundo, individual e coletivamente” 
THOMPSON, Paul. A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro, Paz e Terra: 1992